Há momentos na vida que o véu se
desvanece e a visão é clara, nesses momentos ela vê. A bruma que lhe tolda o
olhar clareia e naqueles instantes o quadro completa-se perante os seus olhos,
as cores avivam-se, as formas delineiam-se e o que antes era turvo torna-se
claro como cristal. Mas ela esconde-o, sempre escondeu, não conta que vê nem o
que vê. Fê-lo uma vez e percebeu a maldição. Para ela não é um dom, é uma
maldição. Não escolhe o que vê nem quando vê. Vê a morte e a vida, ver a morte
deixa-lhe uma amargura imensa no olhar e traz-lhe o gelo ao coração, ver a vida
é a alegria das manhãs de sol e dos sorrisos felizes. Por vezes vê as pessoas.
Ver as pessoas é complicado, acha que não deve ver as pessoas. Há coisas que
não devem ser vistas. E ela sabe que não pode interferir.
Depois há as pessoas dela, essas
vê-as com o coração mas sabe que se as vir com os outros olhos as vê com ela no
caminho. Vida após vida num tecido complexo, fazem parte de si, como o ar que
respira, estão juntos porque assim tem que ser, cruzaram-se porque estava
escrito, vida após vida vão tecer um tecido que a cada teia será mais perfeito
até ser a seda da eternidade.
Porque acha que não deve ver as
pessoas não olha estranhos nos olhos. Sabe que pode ver o que não é para ser
visto, não se deve ver as almas, há segredos que são secretos e assim devem
ficar. Mas sempre soube que um dia iria ser nos olhos de um estranho que iria
ver o caminho. As pessoas dela são o treino da vida para reconhecer este
estranho. No coração delas esteve sempre o livro de instruções para que na hora
que o véu se desvanecesse e a visão fosse a mais clara de sempre e reconhecesse
o que tinha que ver.
Encontrou-o quando não o
procurava e viu-o com os olhos e o
coração numa visão completa. Simplesmente aconteceu. No momento indivisível de
um segundo a tela pintou-se quando o seu olhar encontrou o dele. Quando aquela porta se abriu e o estranho perguntou se podia entrar o destino
cumpriu-se. Imprevisto, inesperado a visão do caminho tornou-se clara no olhar
de um estranho, o encontro mil vezes escrito aconteceu. O caos do mundo
tornou-se silêncio naquele olhar, o mundo parou e vida após vida viu-os aos
dois, num caminho nem sempre perfeito, nem sempre completo, nem sempre cruzado,
nem sempre aceite. Um jogar de dados que através dos tempos perspectiva a
eternidade. Nesta vida os dados estavam lançados, o encontro tinha acontecido.
Nunca negou o olhar ao estranho que é a sua casa, o seu coração conhece-o,
vê-o, sabe-lhe a alma como sabe a sua, são duas faces da mesma moeda. Juntos
são o todo, separados são só metades perdidas. Por vezes perde-se nos olhos do
estranho e sorri, quando lá está perdida o caos do mundo silencia-se em si, não
tem medo. Sabe que o estranho está no caminho dela mas não sabe se ela está no
caminho do estranho nesta vida. O estranho vai ter que escolher e ela não pode
interferir. Até lá espera e espera-o. Quando os seus olhos encontram os do
estranho deixa que eles digam aquilo que as palavras não podem dizer, deixa a
alma e o coração falarem num diálogo de olhares e sorrisos. O estranho deixou
de ser estranho no nano segundo da eternidade que o seu olhar se cruzou com o
dela. O estranho é a casa do seu coração.
O futuro é uma página em branco,
frente à página está um escritor a viver o dilema da criação, palavra após
palavra o futuro escrever-se-á.